quarta-feira, janeiro 30, 2013

Os Miseráveis



Primeiro, avalie o elenco formado por Hugh Jackman, Anne Hathaway, Russel Crowe, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter. Em seguida, pondere: são eles que vão preencher, sempre cantando, as duas horas e trinta e sete minutos de duração do filme.

Antes de mais nada, é este o quadro que inicialmente deve ser informado ao leitor a respeito de Os Miseráveis, musical dirigido por Tom Hooper que estreia nesta sexta (01) e disputa o Oscar em oito categorias.

Na esteira dos fatos, cabe lamentar que o livro homônimo de Victor Hugo, obra máxima da literatura ocidental do século 19, seja mais conhecido como o musical de extraordinário sucesso da Broadway do que como o importante romance que é. Nada em demérito aos 25 anos de merecido sucesso do musical, mas a real grandeza de uma obra literária só se alcança lendo-a. De preferência, sem música.

É como melhor se poderá conhecer a história de Jean Valjean (Hugh Jackman), condenado a 19 anos de prisão por roubar um pão que tenta reconstruir sua vida. Ou a prostituta Fantine (Anne Hathaway), mulher que cai em desgraça por ser mãe solteira. E o oficial de polícia Javert (Russel Crowe), implacável perseguidor de párias, não importando seu estado de fome e miséria. Assim vai-se à doce e apaixonada Cosette (Amanda Seyfried) e ao idealista e bravo Marius (Eddie Redmayne). Todos eles e mais outros presentes, fielmente ao livro, no longo musical de Hooper.

Mas nesta adaptação, é preciso dizer que o problema não está em atravessar sua longa duração, passada de cantoria em cantoria. A história que Victor Hugo escreveu há mais de 150 anos é suficientemente fascinante e comovente para segurar nossa atenção. Da mesma forma, as canções do musical, como comprovam seus 25 anos de sucesso nos palcos, são boas o bastante. Por isso, mesmo a esticada duração, quase inevitável ao se buscar fidelidade (ao livro ou à Broadway), poderia ser facilmente suportada se o trabalho de direção fosse um pouco mais dinâmico. Pois é justamente na má direção que o filme perde sua força e seu poder de fazer as horas passarem.

Esse arrasto das horas acontece porque, ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, essa adaptação sofre de uma cansativa pobreza de recursos visuais. Não que a direção de arte seja ruim. Ao contrário, o trabalho foi bastante bem feito, ainda que não de forma brilhante.

A pobreza de Os Miseráveis está no modo apequenado como ao longo do filme se desenha sua mise en scène*. E isso fica patente no uso exagerado de planos fechados, em especial no rosto dos atores cantando, revelando a falta de criatividade na construção da narrativa visual.

Essa opção de aproximação empobrece o cenário e empobrece também o inevitável tom operístico do musical. Ao exceder-se no modo como aproxima os atores do público, deixa-os descontextualizados na cena, o que acaba por burocratizar a narrativa e o dinamismo das cenas. Perde-se com isso a fluidez, algo indispensável para um musical, mesmo que a opção tenha sido por pouquíssimas cenas de dança e coreografia.

Quando à questão dos atores e suas canções, admitindo minha ignorância na seara da música e do canto, não soaram ruim aos ouvidos, como tampouco sobressaem-se nas interpretações. Na atuação, pode-se destacar Anne Hathaway e Hugh Jackman, mas sem grandes entusiasmos.

Figurando entre os candidatos ao Oscar de melhor filme, mas sintomaticamente, não ao de melhor direção, Os Miseráveis é um musical que se pretende grandioso (e a primeira cena do filme até faz crer que assim será), de épicas emoções. Mas fica mais na pretensão. De grandeza mesmo, o mais perto que chega é no tempo de sua duração.
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(*) expressão francesa que, grosso modo, diz respeito à câmera em relação aos atores e ao cenário, os movimentos dentro do enquadramento ou do próprio enquadramento, a composição do plano etc.
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Les Misérables
Tom Hooper
Reino Unido, 2012
157 min.

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O Lado Bom da Vida

Comédia romântica ou comédia dramática? O Lado Bom da Vida, adaptação do livro homônimo de Matthew Quick, tem essa indefinição. Não que seja necessário ou mesmo importante enquadrar um filme em algum rótulo. Essa peculiar indefinição é apenas um modo de ilustrar a característica singular desse filme, que pende para ambos os lados em um equilíbrio prazeroso de ver.

Bradley Cooper interpreta Pat, um sujeito que acaba de receber alta de uma clínica para tratamento psiquiátrico. Ele foi internado depois de agredir o amante de sua mulher num acesso de fúria. Diagnosticado com transtorno bipolar, regressa para a casa dos pais alimentando a obsessão de se reconciliar com a ex-mulher, da qual deve manter distância devido a uma ordem judicial.

Convidado para jantar com um casal de amigos, conhece Tiffany (Jennifer Lawrence), uma jovem viúva cujo marido era policial. Ela também se recupera do trauma, que a tem levado a um comportamento sexual considerado impróprio. De imediato, surge entre eles uma conexão através das experiências traumáticas que tiveram. Mas a afinação desse vínculo custará a se firmar. Isso porque existe uma certa distopia no que cada um busca.

Pat quer a todo custo provar para a ex-mulher que está melhor e que pode retomar o casamento. Já Tiffany procura um amigo que a entenda mais intimamente do que as outras pessoas. A beleza dessa relação vem justamente dessa afinidade distorcida em compartilham o mesmo sentimento de serem vistos com desconfiança e reprovação pela sociedade e pela família.

No caso de Pat, o aspecto familiar tem um peso maior. Em especial por seu pai, interpretado por Robert DeNiro, que não atuava de forma tão convincente há muito tempo. Ele faz um torcedor fanático e supersticioso do time local de football e um apostador inveterado que vê em Pat um tipo de talismã. A superstição, nesse caso, revela uma frustração que o pai de Pat tem enquanto pai, e serve como um tipo de pretexto para recuperar o tempo perdido com o filho e restabelecer laços corroídos pelo tempo e pela falta de tato.

O melhor de O Lado Bom da Vida está no modo como o filme estabelece relações afetuosas corrompidas pelo tempo através de personagens cativantes. Enquanto reata laços partidos, constrói também a relação entre Pat e Tiffany, que cresce ao longo do filme por caminhos sinuosos.

A forma inspirada como o ator Bradley Cooper interpreta esse cara desajustado e bipolar é sempre carregada de um virtuoso carisma. No contraponto, a atuação de Jennifer Lawrence complementa esse carisma com sua ríspida delicadeza.

O equilíbrio entre romance, comédia e drama surge então de uma beleza ingênua que se sobressai no modo como os personagens se relacionam. Ora de forma bastante dura, ora com disfarçado afeto. Quase sem perceber, atuam um sobre o outro, cada um tentando livrar seu próprio peso sem notar de imediato que também toma para si o peso do outro. Esse balanço dá ao filme um tipo de leveza que não dissolve ou esconde o drama. Evita, assim, um arrastado peso na gravidade dos gestos, como por outro lado não se deixa cair no riso tolo da comédia banal.

O filme só enfraquece nos momentos em que abre mão da sutileza, apelando para o óbvio. É o que acontece, por exemplo, em uma troca de cartas, quando uma simples mudança no ângulo da câmera daria força ao mistério que acaba não sendo mistério algum. O mesmo acontece quando um gesto involuntário é filmado com tanta ênfase e obviedade que simplesmente apaga a sutileza, derrubando assim parte do significado, que estava justamente na sutileza de um gesto mal percebido.

Esses deslizes, que são sintoma de um exagero explicativo que contamina o cinema comercial, não chegam a comprometer a experiência do filme. São poucas interferências equivocadas, que não ofuscam o brilho da dupla de protagonistas. Pois o que o filme tem de melhor está além das ótimas atuações de Cooper e Lawrence, mas principalmente na incrivelmente magnética química que conseguem produzir na tela.
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Silver Linings Playbook
David O. Russel
EUA, 2012
122 min.

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terça-feira, janeiro 29, 2013

Caça aos Gângsteres


De tão esquemático e previsível, Caça aos Gângsteres parece um daqueles brinquedos de montar saído de um encarte de caixa de cereal: recorte aqui, dobre aqui, cole aqui e pronto. Na mesma linha esquemática do roteiro e da trama seguem seus personagens, que mesmo interpretados por atores de qualidade, formam um conjunto de caricaturas.

Ambientado na Los Angeles de 1949, o filme mostra o embate entre a polícia e o gangster mais poderoso da cidade, interpretado por Sean Penn. Ele é Mickey Cohen, e comanda uma rede de ilegalidade que vai de jogos ao tráfico de drogas, passando, claro, pela compra de juízes e políticos. Vendo que não pode enfrentar a organização criminosa pelas vias convencionais, o chefe de polícia, interpretado por Nick Nolte, convoca o sargento John O’Mara (Josh Brolin) para montar uma equipe secreta que deve agir à margem do sistema, sem distintivos e sem nomes.

Segue então a esquemática dinâmica, mostrando o recrutamento da equipe, os tipos peculiares de policiais que formarão o grupo, suas ações contra a estrutura da organização criminosa e as complicações inevitáveis que levará o filme ao confronto final entre os antagonistas.

Quando se fala em caricatura, não trata-se apenas de uma metáfora para desqualificar o filme, já que ele próprio abusa disso em seus personagens. Vai além do perfil de tipo e chega ao aspecto do físico e das feições.

Assim, o rosto quadrado e duro de Josh Brolin é a perfeita caricatura do policial durão dos anos 40, com sua capa e chapéu. Da mesma forma Sean Penn, com seu queixo proeminente resaltado e os vincos de seu rosto reforçados pela luz e pela maquiagem, dando um ar de malvado sem sentimentos. Nessa linha caricata segue Ryan Gosling, que faz o policial estilo “baby face”, com jeito de almofadinha e galã conquistador, cético e indiferente ao combate ao crime. Sem esquecer, claro, da dama fatal, aqui representada pela figura da ambígua (mas nem tanto) de Grace, interpretada por Emma Stone.

No quesito ambientação e personificação, Caça aos Gângsteres faz a lição de casa como filme de gênero. Tem uma direção de arte bastante caprichada. Contudo, todo esse capricho é quase por nada, já que o filme não trabalha a atmosfera da época na sua construção das cenas e dos diálogos. Assim, todo capricho da direção de arte se perde pela falta de personalidade, resultando em algo frio e insosso.

Não podendo ser levado a sério enquanto representante dos gêneros dos quais se reveste – que vai do filme de gângster ao policial noir –, Caça aos Gângsteres fica apenas como uma mimese barata de influências óbvias. Um passatempo que até pode divertir, mas acaba sendo um grande desperdício de ótimos atores e ótimos cenários.
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Gangter Squad
Ruben Fleischer
EUA, 2013
113 min.

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O Mestre


Por ser um filme tão aberto, montado desde o início sobre elipses e que não apresente respostas fáceis para a natureza dos personagens, nem para as relações que se estabelecem entre eles, O Mestre acaba sendo quase que uma antítese do que se vê por aí em matéria de cinema. E isso pode incomodar alguma plateia, especialmente aos que esperam uma tradicional trama mastigada, com respostas muito bem explicadas.

Contudo, é justamente por essa incerteza, calcada sempre em um indefinido desconforto no modo como seus personagens transitam e se esbarram, que O Mestre se revela uma obra cujo consumo pressupõe atenção e disposição para conectar, segundo o entendimento de cada um, as pontas propositalmente soltas do filme. Porque não se trata de um filme de história sob a condição de início, meio e fim. Mas de um filme sobre caminhos e descaminhos, todos trilhados, em algum momento, pela dor ou pela farsa.

Joaquin Phoenix é Freddie, um ex-combatente da marinha que lutou durante a Segunda Guerra Mundial. Terminado o conflito, ele tem de se ajustar novamente ao mundo. O problema é que Freddie nunca foi ajustado. Alcoólatra e preparador de bebidas clandestinas cuja química pode envolver até solvente e combustível, ele tem a mãe internada num hospício e uma condição de desencaixe com a vida que se reflete até mesmo em sua postura. Este ser curvo, na postura e nos caminhos, revela um profundo medo de si mesmo. Parte por conta de uma possível herança de desequilíbrio mental e parte por possíveis traumas de guerra.

É quando está a caminho do fundo do poço que Freddie cruza o caminho de Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), um misto de pastor, filósofo, escritor e cientista que lidera uma seita baseada na regressão a vidas passadas e procedimentos pseudocientíficos de psicanálise. É início dos anos 50 e esta religião começa a atrair adeptos.

Vem desse personagem e sua religião o paralelo muito aventado por aí com a cientologia, a religião que tem arrebatado alguns astros de Hollywood. Muito se especulou sobre o assunto em busca de alguma polêmica. A verdade, porém, é que embora exista esse paralelo de tom irônico, a sutileza dessa ironia atenua qualquer implicação óbvia. Assim, muito do que se falou foi pautado mais pela publicidade da polêmica do que pelo paralelo em si.

Do encontro entre os dois personagens nasce uma relação complexa, na qual Dodd tentará domar o desajuste violento e impulsivo de Freddie. Um esforço que irá de encontro a sua esposa, pilar forte e discreto do homem. Ela é Peggy e sua força será sentida na atuação intensa de Amy Adams, que mesmo tendo uma participação menor na trama, fará sua personagem exalar o tipo de poder que só as mulheres têm quando por trás de um homem.

É com essa combinação de personagens fortes, amparados por atuações impressionantes, que Paul Thomas Anderson construirá seu fluxo de trama, criando cenas antológicas, como uma sessão de catarse entre Dodd e Freddie, na qual mais que o embate entre dois personagens há o embate entre dois grandes atores.

Em meio a elipses e pequenas frestas para o passado dos personagens, o filme vai criando um desconforto permanente. Não revela nunca as reais intenções por trás dos gestos ou o que buscam. Para Dodd, Freddie pode ser o grande desafio de sua crença, mesmo quando parece, ele mesmo, não crer nela integralmente. Essa tênue incerteza entre acreditar no que diz (e nisso implicaria, assim como em Freddie, um traço de desajustada sanidade) e o charlatanismo mais descarado, é o que o filme trabalha de melhor, nos deixando com poucas respostas claras, mas cheios de indícios tênues.

Parte da força de O Mestre está no elo incerto que une os dois personagens centrais. Um tipo de fascínio mútuo, ora autodestrutivo, ora de irmanação, através do qual se reconhecem. Entre a loucura e a pregação, ambos buscam um caminho que os ajustem, ambos sentem-se perdidos. A diferença é que o mestre da história tem como cobertura sua filosofia e sua liderança, enquanto que o discípulo não tem nada. De certa forma, buscam uma liberdade que não acreditam que possam alcançar, porque o mundo é muito estreito para seus ombros largos e cansados. Daí, talvez, a necessidade da loucura ou da farsa.
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The Master
Paul Thomas Anderson
EUA, 2012
144 min.

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quinta-feira, janeiro 24, 2013

País do Desejo


Filme cheio de deficiências, País do Desejo não lembra nada o ótimo cinema de Paulo Caldas, em cujo currículo de diretor tem os ótimos Deserto Feliz (2007) e Baile Perfumado (1997). Ainda que o refino técnico do diretor se faça notar no filme, o que mais sobressai é a ausência de uma força reconhecível, além de uma entrega a muitas pontas soltas desnecessárias. Num único filme, assuntos demais tendem a dizer coisas de menos. É o pecado da pretensão e do excesso.

Maria Padilha vive uma pianista com uma doença terminal. Exibe grande ceticismo diante da vida e acha que a música que carregava dentro de si morreu antes dela. Fábio Assunção é um padre progressista, que não se opõe irracionalmente ao aborto e incentiva o uso do preservativo. É filho de pai ateu, tem um irmão médico que exibe grande lascívia e uma mãe em estado de coma há muito tempo.

Com essa gama de questões orbitando a vida dos personagens, há o encontro casual entre o padre e a doente descrente. Nasce então, da inevitável atração entre eles, uma complexidade de subtramas que o desenrolar do filme simplesmente não consegue dar conta.

Se, por exemplo, as questões que orbitam a vida familiar do padre servem para dar uma perspectiva de profundidade a este personagem, porque precisam ser tão enfáticas, se ficarão esquecidas pelo caminho? Assim acontece com o irmão médico e sua esposa, que pretendem ir à Bulgária porque as mulheres búlgaras são lindas e fica-se por isso mesmo.

Há ainda o pai que zomba da fé católica, além de uma insistente promessa de permissividade erótica na figura da nova enfermeira da mãe em coma; uma jovem oriental que lê mangás (quadrinhos japoneses) eróticos e veste-se com uma provocativa dose de erotização hentai (desenhos animados japoneses eróticos). Mas nenhuma dessas sugestões de subtrama é desenvolvida de forma articulada.

Tão sem articulação quanto o resto, está o caso da menina de 12 anos, violentada pelo tio e grávida de gêmeos. Inspirado num caso real que ocupou a mídia alguns anos atrás, a história da excomunhão da menina, da mãe e dos médicos que realizaram o aborto é o pretexto para um dos conflitos do filme. Mas tudo com tão pouca conexão entre si que o artificialismo acaba sendo o único fator de destaque da história. Contribui para isso atuações fracas, diálogos artificiais e a tônica teatral de algumas cenas.

Na costura de tudo, incluindo ainda o casal protagonista e suas questões de sentimento e descompasso, não se realiza a devida conexão das partes. Elipses não conduzem a nada, sugestões ficam incompletas e depois de apresentar todas essas coisas, o filme se apressa para chegar a um desfecho sem se preocupar com as muitas pontas soltas deixadas pelo caminho.

Enredado em si mesmo e sem nenhuma coesão, Pais do Desejo acena com intenções demais e narrativas de menos. Quer falar de amor incondicional, intransigência religiosa, soberba clerical, verve erótica e relações familiares complexas, sem dar tempo ou entrelace a todas suas pretensões. Brinca de ser livre e nessa brincadeira perde o fio da meada, o que resulta num filme travado e incompleto.
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País do Desejo
Paulo Caldas
Brasil, 2012
78 min.

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quarta-feira, janeiro 23, 2013

Caverna dos Sonhos Esquecidos


Até o momento, apenas três filmes usaram o recurso do efeito 3D de forma verdadeiramente relevante para o que pretendiam mostrar. São eles: As Aventuras de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, As Aventuras de Pi, de Ang Lee, e o filme-homenagem Pina, de Wim Wenders, dedicado á coreógrafa alemã Pina Baucsh (1940-2009). Em todos esses casos, a qualidade e o apuro das imagens tridimensionais levaram o espectador a uma experiência que não seria a mesma sem o 3D.

O quarto a filme a poder figurar nesta lista estreia em São Paulo, exclusivamente no Cinesesc, na próxima sexta-feira (25). Chama-se Caverna dos Sonhos Esquecidos e faz da tridimensionalidade virtual uma experiência que vai além da imagem e nos reflete na temporalidade da existência humana.

Realizado pelo diretor alemão Werner Herzog, o filme documenta o interior da caverna Chauvet-Pont-d’Arc, no sul da França. Nesta caverna, cujo acesso é restrito a pouquíssimos estudiosos (poucas horas por dia e poucos dias por ano), estão as pinturas rupestres mais antigas conhecidas pela humanidade.

Descobertas em 1994, estas figuras datam de aproximadamente 32 mil anos, mais que o dobro de qualquer outra pintura conhecida do gênero. Nos desenhos, diversos animais estão registrados com uma qualidade técnica surpreendente.

Agora, graças ao 3D, estas figuras podem ser vistas com uma nitidez rara e um poder de imersão assombroso. Uma experiência visual riquíssima em detalhes, repleta de uma textura cintilante e com uma profundidade de campo poucas vezes proporcionada pelo cinema. Herzog nos transmite um realismo que impressiona não apenas pela qualidade, mas pela importância e grandiosidade do que mostra.

Contudo, o diretor não se limita ao registro documental, que por si só já valeria a ida ao cinema. Ele quer mais que mostrar, quer também contextualizar e nos aproximar mais ainda da experiência de adentrar na caverna.

Através da narração, feita pelo próprio diretor, e com auxílio de alguns efeitos, ele propõe e instiga uma reflexão a respeito da dimensão da humanidade. Cria nessa reflexão uma perspectiva e uma conexão com o passado que se avoluma à medida que tomamos consciência de uma força que remete à nossa ancestralidade enquanto espécie humana. É mais que História ou Antropologia, é um ensaio que passa pelo filosófico e pelo metafísico, mas sem o pedantismo ou o hermetismo do discurso acadêmico.

Herzog foge da armadilha do discurso enfadonho não apenas por preencher suas reflexões com as imagens incríveis da caverna e com depoimentos de estudiosos. Mas também por não partir de afirmações ou certezas, e sim de especulações inteligentes e sensíveis a respeito do que vemos e do que somos.

Mais que um documentário e mais que uma experiência de imersão visual, Caverna dos Sonhos Esquecidos é um filme que trata de dimensão. A intensidade visual de suas imagens serve de suporte para uma investigação cheia de questionamentos a respeito de outras dimensões; a dimensão histórica, a dimensão do tempo, a dimensão da humanidade e até mesmo a dimensão do cinema enquanto registro dessa atemporalidade instigante.

Um filme que parte de incríveis imagens de uma incrível descoberta para refletir e nos instigar a pensar sobre nossa incrível existência ancestral.
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Cave of Forgotten Dreams
Werner Herzog
Canadá/EUA/França/Alemanha/Reino Unido, 2010
90 min.

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domingo, janeiro 20, 2013

Django Livre






Mais uma vez, Quentin Tarantino veste a roupagem que lhe atribuíram e faz o papel desse diretor brilhante que mistura referências e influências num cozido de qualidade cheio de estilo. Acontece, porém, que, em Django Livre, embora esta roupagem ainda lhe sirva, o tal papel de diretor brilhante já não parece se encaixar tão bem. Estaria Tarantino começando a ficar nu?

O fato é que, desde sua estreia com Cães de Aluguel (1992), o diretor vem incorporando a seus filmes suas referências de cinéfilo e de profundo conhecedor da cultura pulp. E faz isso sempre muito bem.

No entanto, ao acreditar mais na roupagem que veste do que no velho bom senso, talvez o diretor esteja no caminho de perder a mão. E o primeiro sinal disso está, de cara, na duração de seu novo filme: 165 minutos. Uma duração bastante desnecessária.

Em Django Livre, Tarantino presta sua homenagem ao gênero que ficou conhecido como western spaghetti. Esses westerns eram produções europeias (geralmente Itália e Espanha) que de meados de anos 60 até início dos 70 emulavam o western americano, que na época já vinha em decadência em sua terra natal, mas ainda era muito popular na Europa. Apesar de serem em geral produções de baixo orçamento, nas mãos de alguns diretores esses filmes quebraram diversos paradigmas do gênero e criaram toda uma nova mitologia para seus personagens.

É dessa fonte que bebe Tarantino, em um filme cheio de problemas, a começar pelo roteiro.

Qualquer um que tenha visto o trailer sabe toda a história. Caçador de recompensas liberta escravo negro que quer resgatar sua esposa e se vingar. Mas não é essa simplicidade o problema, já que esse fio de história é apenas pretexto para os artifícios de gênero e da trama que Tarantino gosta de compor. O diretor sempre foi bem ao costurar histórias que misturam elementos, com personagens e situações que em princípio parecem díspares e difíceis de concatenar em uma narrativa coesa. Em Django Livre essa fórmula ainda funciona, mas com uma fragilidade muito maior do que se podia esperar.

Na sua longa duração, o filme não consegue se manter tenso e coeso como em outros trabalhos do diretor. Mesmo a motivação da vingança, tema recorrente na sua obra, perde sua força ao longo da projeção. Nesse quesito, Tarantino parece oscilar entre a sua tradicional construção do nêmesis implacável – como a Noiva do díptico Kill Bill ou a oportuna vingança de Shosanna em Bastardos Inglórios – e a força do mito alemão do herói Siegfried. Esta oscilação tira força de ambas vertentes, ainda que a segunda resulte em uma das melhores cenas do filme, quando à luz de uma fogueira, diante de uma rocha e com sutilíssimo jogo de sombras, conta-se a lenda nórdica de Siegfried e Brunhild.

Django Livre também se mostra falho na coerência dos personagens. Em especial na construção fragmentada do protagonista vivido por Jamie Foxx. Ainda que o ator negro e o austríaco Christoph Waltz (que vive o caçador de recompensas que liberta Django) estejam ótimos em seus papeis, em alguns momentos chaves estes personagens executam ações que fere gravemente a lógica interna do filme e o modo como eles mesmos foram desenhados ao longo da narrativa.

Já o cozido que Tarantino faz, de drama ambientado no sul escravocrata norte-americano dois anos antes da Guerra Civil e montado com tipos do western spaghetti, é interessante e rende um ótimo caldo. Nessa mistura improvável, sem qualquer vínculo que a realidade histórica do período, reside o que de melhor há em um filme “tarantinesco”. Assim como a também improvável e historicamente inexistente luta de mandingos, que o diretor extrai de outro gênero de filme dos anos 70, o blaxploitation.

Mas ainda que toda essa mistura faça parte da marca de seu cinema, há exageros que fazem do filme uma experiência irregular, chegando perto do cansativo.

Esses exageros fazem-se sentir – na verdade são amplificados – na duração do filme. Especialmente na segunda metade, quase toda ela voltada para a trama que se inicia com a entrada do personagem de Leonardo DiCaprio na história. É na tentativa de criar uma atmosfera de tensão, pontuada por traços sutis de desequilíbrio no personagem de DiCaprio (onde o exagero mais se configura em algumas cenas) que o filme se mostra mais fragilizado, alternando bons e maus momentos. Exemplo disso é uma sequência toda falada em alemão, em que se pretende uma expectativa crescente e que simplesmente não funciona, levando a um desfecho simplesmente trivial. E trivial é justamente o que não se espera de um filme de Tarantino.

Tudo isso, porém, não faz de Django Livre um filme ruim. Seus momentos de brilho são dignos da filmografia de Tarantino, como uma divertida cena protagonizada por brancos mascarados na qual a situação remete ao melhor da comédia do grupo britânico Monty Python. Há também os tradicionais diálogos improváveis, que na boca dos personagens de Tarantino revelam uma presença de espírito fascinante. Já a trilha sonora segue o de sempre, um cuidado primoroso na seleção de temas musicais excelentes, da primeira à última incidência.

Entre problemas e acertos, o que convém destacar é que os acertos são sempre esperados, tendo-se em conta a carreira notável que Tarantino vem fazendo como diretor. Mas quando equívocos despontam de diversos aspectos do filme, como ocorre com Django Livre, isso pode ser sinal de uma pretensão exagerada do diretor, que passa a crer demais em si mesmo e nos elogios rasgados com os quais deve ter se habituado. O resultado é um filme ainda muito bom, mas que mostra um perceptível declínio e uma preocupante autocongratulação.
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Django Unchained
Quentin Tarantino
EUA, 2012
165 min.

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quinta-feira, janeiro 17, 2013

Essential Killing



Em Essential Killing o diretor polonês Jerzy Skolimowski desmonta qualquer estrutura de perspectivas e pontos de vista. Ali não importa a história, importa apenas o homem. Quando fixa sua câmera neste homem, o diretor nos leva à imersão completa de uma insistente luta pela sobrevivência. Mas na forma como se apresenta, esta sobrevivência não surge dourada de heroísmo ou bravura, mas tão somente de instinto e humanidade.

Em uma atuação brilhante (e fisicamente extenuante), Vincent Gallo é esse afegão sem nome capturado pelos norte-americanos depois de matar uma patrulha. Interrogado e torturado, ele acaba sendo “vítima” de uma inesperada fuga durante uma transferência de prisioneiros. A palavra vítima entra aqui como antecipação do drama que ele terá de enfrentar para não ser recapturado ou morto.

Nesta resistência pela vida, ao diretor parece interessar apenas o homem e sua permanência. Sua história pregressa é apenas pincelada em flashes de memória e momentos de alucinação. De resto, ele é apenas o alvo de uma caçada.

Sob a tenacidade muito mais instintiva que de bravura, Essential Killing nos mostra o ser humano em uma condição de animal. Na tela, temos a representação mais intensa da desgastada metáfora do filósofo Thomas Hobbes, do homem como lobo do homem.

Mas para além dessa representação, sutilmente Skolimowski pincela outras subjetividades. Algumas muito breves, como o traje branco de neve dos soldados americanos em que há um capuz branco e cuja semelhança com outro tipo de capuz branco da cultura norte-americana não passa despercebido.

Contudo, o mais intenso dessa desventura está na animalização do ser humano como objeto de caça. Nesta condição, matar para sobreviver não é uma atitude de resistência ideológica, mas de reflexo e defesa. Neste fugitivo anônimo, que passa todo o filme dizer uma única palavra – mas que nos gestos e no rosto de Gallo consegue dizer tudo –, não há um plano de violência, não há uma intenção de matar. Ele só se torna lobo do homem quando acuado, quando desumanizado na condição de presa.

É esse detalhe, essa perspectiva, que faz toda diferença na sua condição. Com a violência e a tensão de sua fuga está posta em cena a discussão da condição humana e sua variável ante o inóspito e ao instinto da vida. Não há ideal, não há lado ou motivo, apenas o homem.

No desenrolar dessa condição cada vez mais violenta, sem amparo, esperança ou mesmo direção, surge um inesperado resgate. Um suspiro breve de humanidade em um gesto de ajuda. Depois disso, como numa ironia de pureza, há um cavalo branco. Nele repousa um sentido de pureza e liberdade. Não chega a ser uma redenção, porque não sabemos até quem ponto este personagem anônimo precisa de uma. Serve, talvez, a um estado de purificação, ainda que esta purificação esteja claramente manchada de sangue.
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Essential Killing
Jerzy Skolimowski
Polônia/Noruega/Irlanda/Hungria, 2010
83 min.

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quarta-feira, janeiro 16, 2013

Amor

Mesmo quando fala da delicada condição do amor, o austríaco Michael Haneke o faz pelo viés do sofrimento. Acusado algumas vezes de sádico por impor uma espécie de tortura ao espectador de seus filmes, esse diretor exige sempre de seu público a vontade necessária para suportar a angústia.

Seja essa angústia de cunho claramente violento, como em Violência Gratuita (1997); seja de terror psicológico, como em Caché (2005); seja na exploração na natureza de um mal atávico, como em A Fita Branca (2009).

Em Amor, Haneke lança seu olhar para o envelhecimento ao retratar a vida de um casal de idosos. Assim, temas como a compaixão, o sofrimento e a solidão, bem como eutanásia, tornam-se linhas mestras que conduzem o drama dessa história que carrega uma beleza amarga.

Indicado duplamente ao Oscar de melhor filme (concorre ao mesmo tempo ao prêmio de melhor filme e de melhor filme estrangeiro), Amor retrata um processo degenerativo na vida desse casal, quando um deles adoece irremediavelmente.

Na estrutura narrativa, o diretor concentra-se na intimidade, aprofundando o tempo por elipses que transmitem o agravamento da doença. Cria uma evolução dinâmica, mas que preserva a tensão do drama experimentado pelos personagens.

Dentro do apartamento onde vive o casal, cresce um tipo de aprisionamento por sobre outro aprisionamento. Naquele espaço de convivência em comum - de toda uma vida em comum - a relação afetuosa que se desdobra pelo cuidado, porém sem esconder o transtorno de quem sofre e o de quem assiste sofrer.

Para dar estofo dramático a essa profunda jornada de amor e solidão, Haneke coloca em cena o peso de três nomes sem os quais não se conta a história do cinema francês.

Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva e Isabelle Huppert são, respectivamente, marido, esposa e filha. Esta última, com aparições pontuais, que mais enfatizam a solidão do casal do que a possibilidade de compartilhamento do fardo. Mas são as atuações de Trintignant e Riva que dão ao filme sua intensidade precisa, algo de assombro dolorido, preenchido pela sensibilidade crua, típica do cinema de Haneke.

Um tipo de cinema, aliás, que não evita a polêmica, aqui representada pela discussão da eutanásia. Mas como a obviedade é fator escasso na obra do diretor, essa discussão se apresenta pela surpresa, construída de forma delicada, sem deixar de ressaltar os traços de certa brutalidade humana.

Para dimensionar e multifacetar esta delicada brutalidade, constrói-se um drama do qual também somos vítimas, justamente por testemunharmos o sofrimento. Reside aí o aspecto recorrente do cinema de Haneke, que é o de nos fazer passar pelo filme não apenas como espectadores passivos, mas como cúmplices da violência e da inquietude.

Amor é filme que fala do fim da vida, da dignidade que merecemos ao chegar perto desse fim e que nem sempre nos é reservada. Seu sentimento de mundo é a solidão inevitável da velhice, um aprisionamento do corpo ante o descompasso de querer liberdade, ou de querer libertar.

Por isso o amor de Haneke não é idílico, como também não é cínico. É, antes, feito de verdade, com sentimentos que vão além da beleza simples e traduzem a complexidade do que é real e humano. Um amor de afeto e dedicação, como nos relega a condição humana, mas também cruel e brutal, como parte dessa mesma condição humana.
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Amour
Michal Haneke
França/Alemanha/Áustria, 2012
127 min.

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terça-feira, janeiro 15, 2013

João e Maria: Caçadores de Bruxas

João e Maria: Caçadores de Bruxas chega como mais uma produção-sintoma do atual momento da indústria de cinema de Hollywood. O momento, segundo diz-se, é de crise de criatividade, e a consequência disso é uma avalanche de produções que adaptam ou repaginam histórias conhecidas. Nesta onda têm entrado HQs, contos infantis, refilmagens, continuações, prólogos e reinício de franquias de sucesso.

A verdade é que não há crise de criatividade alguma. O que ocorre é uma onda de conservadorismo de investimento. Tem-se preferido apostar dinheiro em produções com possibilidade de alavancar público – pelo fato de soarem “familiar” a esse público –, ao invés de apostar em ideias originais, cujo sucesso é sempre uma incógnita. Já a questão de como somos atraídos pelo conforto do que é familiar, em oposição ao novo, fica para outra oportunidade.

Retomando o filme, João e Maria entra no sub-sub-gênero das adaptações de contos infantis clássicos com roupagem de ação e aventura. Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, A Bela e a Fera, João e o Pé de Feijão fazem parte, entre outros, desse segmento.

O básico, todos conhecemos: João (Jeremy Renner) e Maria (Gemma Arterton), irmãos, na floresta, encontram uma casa feita de doces. Comem até se fartarem e acabam aprisionados por uma bruxa má que quer assá-los para uma farta refeição. A bruxa não enxerga mesmo muito bem, eles vão tapeando a malvada, até que escapam e matam a megera em seu próprio forno. No filme, os irmãos tornam-se celebridades e crescem aprimorando-se na arte de caçar e exterminar bruxas.

Mesmo não se levando a sério (e isso fica claro logo no início, quando João nos aconselha a nunca entrar em uma casa feita de doces [!]), chama atenção o modo como o filme não tem vergonha de ser troncho, para não dizer mal acabado. Não nos quesitos técnicos e de efeitos, que são aceitáveis. Mas no quesito roteiro e elementos internos da história, dos quais o filme faz uma grande salada.

Contratados para encontrar crianças desaparecidas de um vilarejo, os irmãos têm em seu arsenal armas de fogo, embora a ambientação remeta a uma era medieval. As bruxas, por sua vez, dispõem de “varinhas” e vassouras voadoras, no melhor estilo Harry Potter, mas sempre com a aparência malévola e deformada das bruxas más. Na salada, entra também figuras como um troll, um ser que parece estar em moda nos filmes de fantasia, além de personagens cuja função na trama é não ter função alguma.

Mais constrangedor, contudo, é o arranjo desarranjado do roteiro. Seus desdobramentos e enlaces são absolutamente precários, deixando transparecer um desmazelo quase ofensivo na sua elaboração. Lançado também em 3D, o conjunto dessa produção não demonstra nenhum esforço em disfarçar seu cunho unicamente comercial.

Claro que nesse aspecto, o comercial, a produção não difere de quase tudo que se faz em cinema, incluindo aí boa parte do cinema dito de arte. Afinal, quase todos querem faturar. A diferença é que em geral há um mínimo de esforço em entregar ao espectador um produto acabado, mesmo que esse acabamento seja pobre de conteúdo e qualidade.

Por isso, o que incomoda em João e Maria é a desfaçatez de nem ao menos se preocupar em fazer seu roteiro ter um mínimo de coerência interna. Os elos que desdobram as sequências do filme são quase infantis, quando não são simplesmente inexistentes.

Nas cenas de ação, o filme segue a cartilha do gênero, mas também sem grande esforço, cumprindo com o básico em lutas, perseguições e objetos vindos na direção dos óculos 3D. Para quem conseguir desligar totalmente qualquer sentido crítico ou de atenção à história, os minutos podem até passar sem sofrimento. Mas para quem não abre mão de prestar um mínimo de atenção à trama e aos personagens, ficará a clara sensação de que falta muita coisa para aquilo ser chamado de filme no sentido narrativo da palavra.
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Hansel and Gretal Witch Hunter
Tommy Wirkola
Alemanha/EUA, 2013

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domingo, janeiro 06, 2013

O Som ao Redor


Enquanto artigos em jornais, textos acadêmicos e mesas de sociologia discutem o Brasil econômico e social recente, Kleber Mendonça Filho fez um filme. E ao realizar seu primeiro longa de ficção, o diretor conseguiu algo muito simples: desenhou para que a gente entendesse. Esqueça tanto palavreado: vá ver O Som ao Redor. Porque ali, de forma simples, está contido quase tudo.

Porém, detrás dessa simplicidade aparente, está construído um universo cheio de cotidiano, através do qual se revela nas entrelinhas uma complexidade e uma visão apurada, inequívoca, do que é, do que está se tornado, e de onde vem nossa nova e velha sociedade pequeno-grande classe média.

O filme, engenhosamente, parte do restrito universo de uma rua de Recife para desenhar, com sintomas e sutilezas, a cara nossa de cada dia. Está ali a mesquinhez, o medo onipresente, o consumismo, as relações de pequeno poder, a ascensão social “disfuncionalizada” no enclausuramento em si próprio – e expressa, magistralmente, na cena de indignação por se receber sua revista semanal fora do plástico. Detalhe na amplidão do filme, mas sintoma de uma visão estreita da vida.

A rua é a mesma na qual o diretor mora e embora os personagens sejam fictícios, os sons que permeiam todo o filme são os sons da sua realidade. São esses sons ao redor que abraçam os diversos microcosmos dos personagens, reintegrando a fragmentação e dando ao particular uma estrutura de todo.

Não há uma trama central. O filme passa pelo cotidiano de algumas famílias, universos que se cruzam frequentemente, embora nunca de forma forçada ou reforçada pelo óbvio. O óbvio existe, está ali, não precisa ser sublinhado.

Há em tudo, no detalhe e até no absurdo, uma sutileza que cresce com o filme, transformando o cotidiano em desconforto. O desconforto torna-se perturbador e o resultado é um absoluto, porém subliminar, terror. Um terror muito pior do que aquele que assusta, pois muitas vezes leva ao riso. Mas é aquele riso nervoso de ver-se espelhado no medo, de saber-se envolto, e também parte, do mesmo terror.

De uma rede lenta e habilmente construída pela montagem e ritmo coerente, revela-se uma estrutura sorrateiramente perniciosa. Vai da desesperança especulativa ao patriarcalismo indissolúvel, do cinismo nosso de cada dia a uma urgência em SER pelo que se tem ou pelo que se PODE. Disso resulta o vazio e o tédio, vultos de uma vaidade mal compreendida. Resulta também o contraste, a permanência do velho no novo. E tudo amarrado sob um arco cujo desfecho surpreende e amarra com clareza.

O leque de abordagens que O Som ao Redor permite é extenso. Não cabe num texto, não cabe numa noite de discussão. O que cabe dizer é que não é filme para entreter, mas para fazer pensar, sem que isso incorra nalgum tipo de hermetismo ou simbologia, feito apenas para iniciados em cinema, geralmente amigos do diretor.

Em O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho é universal, amplo e específico ao mesmo tempo. Revela-nos com clareza, mas também com entrelinhas. Ao fazê-lo, nos permite entender e também não entender, porque a dúvida não deixa de ser uma forma de entendimento, ou pelo menos de estímulo a quem não tem preguiça de pensar.

Antes de tudo, nos permite sentir e ouvir o som avassalador que vem crescendo ao nosso redor. Mostra que tem alguém ouvindo, e que já é tempo de deixarmos de nos fazermos de surdos.
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O Som ao Redor
Kleber Mendonça Filho
Brasil, 2012
131 min.

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