sexta-feira, dezembro 28, 2012

Destaques do Ano



Nada de lista com hierarquia de melhores. Embora sirvam ao gosto eletivo em geral, acho listas de finais do ano, assim como rankings em geral, uma coisa meio boba. Nada demais, caso algumas pessoas não levassem essa brincadeira muito a sério. E levar-se a sério demais é dar passo firme rumo a um bom papel de tolo.

Assim, o que segue abaixo é uma lista, sem hierarquia ou critério de valor numérico, de filmes que merecem serem destacados, na minha modesta opinião. Fazem parte do que pude ver ao longo do ano e ficam como meus destaques de 2012. A ordem em que aparecem é a ordem em que os vi. Nada mais que isso.


Drive
 Dizem que é muita espuma e pouco filme. Pode ser, mas é uma espuma com estilo e personalidade. Não é qualquer diretor que produz espuma tão bem e isso já é motivo para destaque.  A sequência de abertura é memorável e o filme recupera um estilo de filme que já não se vê. De uma forma ou de outra, disparado um dos melhores do ano.


Tudo Pelo Poder
George Clooney na direção mostra confiança e vigor. Neste filme, revela entranhas do poder com uma trama cheia de cinismo. Articula com inteligência e deixa a história bem amarrada. Mas não seria tão bom sem as excelentes atuações de Ryan Gosling, Paul Giamatti e o próprio Clooney.


A Separação
A expressão “cinema iraniano” virou piada-pronta-clichê de quem não conhece nada de cinema. Azar desses. O diretor Asghar Farhadi constrói uma dinâmica irretocável ao expor o Irã e sua cultura como elemento anacrônico da vida. De quebra, trabalha com brilhantismo questões como culpa e responsabilidade, especialmente quando derruba qualquer traço de maniqueísmo com personagens absolutamente humanos.


Precisamos Falar Sobre o Kevin 
Uma interpretação magnífica de Tilda Swinton e uma direção inteligente da diretora Lynne Ramsay. Uma combinação que na tela revela o mal em seu estado puro e humano, mas não através dos atos, mas através da dor de uma mãe vítima das consequências dos atos.


Os Descendentes
 A direção de Alexander Payne e a atuação de George Clooney são outro exemplo de uma combinação que chegou a um resultado excelente. Neste caso, serve para dar ao drama sua natural condição de ridículo. Assim, apresenta o patético natural em nós quando passamos por momentos difíceis.


Pina 3D
Wim Wenders usa o 3D para homenagear Pina Bausch, uma das maiores coreógrafas da Alemanha e que nos anos 70 redesenhou muito do que a dança viria a ser como expressão artística. Wenders faz do 3D um artifício que nos arrasta para o movimento e para o sentimento do movimento. Cria imagens impressionantes, insólitas e tocantes.


Jovens Adultos
Passou bastante despercebido, mas merece destaque por apresentar personagens disfuncionais, física e emocionalmente. Apresenta-se como filme de humor politicamente incorreto, mas se desenvolve como drama sobre maturidade que traz certo incômodo. Deveria ter sido melhor visto.


Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha
Helena Ignês dá seguimento à herança do clássico absoluto do cinema marginal de Rogério Sganzerla. Mas o faz com personalidade própria, sustentando o caótico subversivo do espírito da obra primeira, mas apresentando uma atualização de pulso e assinatura. É coerente com o original sem ser servil a este.


Os Vingadores
Diversão, pura e simplesmente. Sem pretensões, sem grande conteúdo, sem elastificar trama, roteiro e personagens. Ao conseguir coordenar ação e tempos mortos com equilíbrio e por ter um aparato digital de efeitos irrepreensíveis, agradou todo mundo. É uma grande bobagem, claro. Mas uma bobagem muito divertida.


Deus da Carnificina
Roman Polanski filma teatro. Como dizem, é cinema falado. Mas o diretor consegue transformar essa peça de teatro, passada quase inteiramente dentro de um apartamento, em algo ironicamente perturbador. Apega-se, sim, ao texto original, mas sabe como poucos colocar sua câmera e aproveitar o espaço reduzido da ação.


Fausto
Do diretor russo Aleksandr Sokurov, esta adaptação da obra de Goethe para o cinema (entre tantas outras já realizadas), apresenta um apuro visual raro. As cores, a luz e os planos são motivo a parte para ver o filme e se impressionar. Mas, além disso, o diretor também disseca a culpa, a ganância e a maldade. Não é um filme fácil de atravessar. Exige muito do espectador com seu tom monocórdico de falatório. A travessia, no entanto, compensa o sacrifício.


Cosmópolis
David Cronenberg realiza uma tradução, em atmosfera e disfunção, dos dias de nossa economia global e abstrata. Num mundo onde o dinheiro circula, brota e some sem nunca ser visto, e as riquezas se constroem sem que nada se produza, o diretor transfere para a tela a personificação desse mundo e de seus arautos. Como não poderia deixar de ser, faz-se perturbador e desconfortável.


Um Alguém Apaixonado
Abbas Kiarostami, mais uma vez, nos coloca em dúvida. A incerteza é peça fundamental desse e de seu filme anterior, “Cópia Fiel”. Aqui, no entanto, há menos dúvida sobre o que é fato ou dissimulação. Mas o simulacro ainda é o motivo que revela dramas. Não há propriamente uma história. Apenas personagens. Para este brilhante diretor iraniano, isso é mais que o suficiente para dizer algo. E diz, com segurança e uma capacidade de criar sentimento incrível.


Gonzaga: De Pai para Filho
Cinemão nacional dos bons. Do tipo necessário, não apenas para resgate de nossa cultura e história, mas para a preservação da memória de figuras tão importantes como foi Luiz Gonzaga. O diretor Breno Silveira acerta em fugir da óbvia cinebiografia e vai em busca do conflito entre pai e filho. Emociona e elucida uma história pouco conhecida de dois nomes importantes da nossa música.


Holly Motors
Desconcertante. A melhor qualidade desse filme é nos arrancar da zona de conforto e propor um jogo de simulação. É a retórica pela imagem fragmentada, pelo abrupto desconcerto. O diretor Leos Carax apresenta tudo isso com uma beleza emocionante e vibrante. Não acerta o tempo todo, mas tem a ousadia de não se fazer entender sempre. Para alguns, isso é a morte. Para outros, o estímulo.
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sábado, dezembro 22, 2012

As Aventuras de Pi


Apesar das fantásticas imagens e dos excelentes efeitos especiais, o que faz de As Aventuras de Pi um filme encantador é o mais simples em qualquer filme: uma boa história. No caso, a do menino indiano que cresceu no zoológico da família e que sobrevive a um naufrágio ao lado de um tigre feroz. Um menino que “colecionava” religiões por achar ser possível acreditar em mais do que apenas uma.

Diretor de filmes como O Tigre e o Dragão e O Segredo de Brokeback Mountain, o chinês Ang Lee já mostrou saber dosar aventura e sensibilidade. Agora, na adaptação para o cinema do livro homônimo de Yann Martel, é o equilíbrio desses ingredientes, temperados com imagens de encher os olhos, o que faz de seu novo filme uma experiência grandiosa e tocante.

Depois de conhecermos a natureza singular de Pi, o jovem filho de pais ateus que crê em muitas religiões – assim como a história não menos singular de seu nome –, somos levados ao alto mar, em um naufrágio que não poderia ser mais insólito. Um jovem, um barco e um tigre na imensidão do oceano pacífico. Dessa improvável combinação, uma história de sobrevivência, mas também de sublimação da tragédia e da perda.

Como já havia feito em O Tigre e o Dragão, Lee nos apresenta o intangível particular de personagens cuja cultura e compreensão da vida se distancia do nosso comum ocidental.

Porém, se no épico de artes marciais os códigos de conduta e honra serviam de matriz para uma complexa relação entre dever e destino, aqui o abismo entre visões filosóficas diferentes da nossa ganha uma ponte mais sólida, mas fácil de ser transposta e compreendida. Esta ponte se chama fábula.

Pois através da fábula conheceremos o espírito de Pi. Através da fábula acompanharemos sua jornada improvável pela sobrevivência e sua mitológica travessia. Assim, é a fábula que revelará, feito reflexo de um olhar selvagem, o mais interior do sentimento de Pi. E tudo isso em meio à aventura improvável.

Para dar cor e forma a essa aventura, Ang Lee capricha nos efeitos especiais. Criaturas marinhas, a imensidão do nada oceânico, as tempestades e o tigre, em sua natureza animalesca e ameaçadora, compõem uma visão épica, quase onírica, dos desafios dessa sobrevivência em alto mar. Todo esse aspecto visual faz de As Aventuras de Pi um filme para ser visto no cinema, em tela grande. Essa é a única forma de experimentar inteiramente sua grandeza visual.

Emocionante sem precisar de grandes gestos dramáticos, parte do brilho do filme está também nas atuações simples e cheias de sentimento. Em especial de Suraj Sharma (Pi jovem) e Irrfan Khan (Pi adulto). São essas atuações que sustentam o filme, que dão sentido a todo aparato visual da produção. Com uma sensibilidade rara nas recentes produções de grandes efeitos visuais, aqui se valoriza o gesto do ator, o drama sincero, a expressão do rosto.

Como no mais elementar - e tão facilmente ignorado - do cinema, As Avenutras de Pi encanta pela história incrível, pela sensibilidade do que ela encerra quando se conclui, pelo que tem de simples no final. Como no mais elementar do cinema, efeitos e imagens grandiosas são suporte, acessório, e não um fim em si mesmas.

Ang Lee faz dos efeitos instrumentos da narrativa, não a razão dela. Aqui, o que importa, como no mais elementar do cinema, é a história da vida de Pi. Com toda beleza e simplicidade que isso encerra. Por isso é cinema grande.
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Life of Pi
Ang Lee
EUA/China, 2012
127 min.

Traier

terça-feira, dezembro 18, 2012

O Homem da Máfia


Nesta segunda parceria entre o diretor Andrew Dominik e o ator Brad Pitt (a primeira foi em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, de 2007) há um tênue linha de humor que perpassa quase todo o filme. Em se tratando do submundo do crime, com bandidos rastaqueras e despreparados, o humor das situações remete ao cinema de Guy Ritchie, de Snatch – Porcos e Diamantes (2000).

Talvez este roteiro, nas mãos de Ritchie, que não costuma fazer filme pretensioso, funcionaria melhor. Porque é justamente a pretensão o que mais enfraquece o filme de Dominik, ainda que no geral este não seja um filme ruim.

Mate-os suavemente seria também título melhor, literal, em relação ao original em inglês, do que O Homem da Máfia. Matar suavemente é o que faz o assassino de aluguel Jackie, interpretado por Brad Pitt. Ele é chamado a New Orleans para descobrir e executar quem teve a audácia de assaltar uma casa de jogo clandestino cheia de mafiosos.

Na tarefa, diálogos cínicos a respeito da nação norte-americana e uma boa dose de violência estilizada, com direito a trilha sonora descolada e alguma câmera lenta.

Como se verá no diálogo final, O Homem da Máfia é um filme sobre economia,  sociedade, nação e mercado. Daí a pretensão, a de fazer de um filme de gangsteres uma intenção de crítica mordaz contra o cinismo do governo e mesmo do povo norte-americano. Fizesse apenas um filme de gangster, estaria de bom tamanho.

Esta pompa de crítica afiada se vê (e não demora a se desmanchar no superficial) logo nas primeiras cenas, quando a todo momento ouve-se o áudio de discursos do presidente Bush e do então candidato à presidência Barack Obama.

Sem grandes sutilezas, o filme cria um paralelo entre os assuntos do submundo, como o trabalho de Jackie, a postura corporativa da máfia e a questão do dinheiro, com as questões nacionais em debate no cenário político, como o pacote de cortes de gastos da economia e o risco de falência do sistema financeiro do país.

A intenção é boa, mas o resultado é falho, apesar de o ponto alto do filme, o diálogo final de Jackie sobre o que pensa dos EUA como justificativa para cobrar seu pagamento, ter um bom impacto.

O que atrapalha o filme não é apenas obviedade e a pretensão crítica, mas o desperdício de uma boa situação para se fazer um filme com estilo, extraindo da violência a mensagem que quer extrair dos diálogos. Toda a falação do filme, a despeito das boas atuações de James Gandolfini e Brad Pitt soa artificial demais.

Mesmo tropeçando na própria intenção, O Homem da Máfia é um filme que vale a ida ao cinema. Tem uma ótima trilha sonora, ótimas atuações e uma situação de comédia de erros, mas sem tanta comédia. Na verdade, seu tom de humor funciona bem. Dosado com critério para não atrapalhar a atmosfera da fita, este humor imprime aos personagens um tom real, absurdo como a realidade.

Com menos discurso e mais ação poderia ser um filme mais inteligente e muito mais divertido.
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Killing Them Softly
Andrew Dominik
EUA, 2012
97 min.

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Liv & Ingmar - Uma História de Amor


Quando conheceu o diretor sueco Ingmar Bergman, a atriz norueguesa Liv Ullmann tinha apenas 25 anos. Persona, de 1966, foi o primeiro filme em que trabalharam juntos. No início das filmagens, conta a atriz, ela chorava todos os dias. As lágrimas vinham da comoção de estar trabalhando com Bergman, 21 anos mais velho que ela e já consagrado como um dos maiores nomes do cinema mundial.

Este fato - o choro de admiração - serve como perfeita alegoria para dimensionar a importância do diretor Ingmar Bergman. Seu tamanho e significado para o cinema não cabem em breve texto, mas encontram tênue reflexo na expressividade de lágrimas como as de Liv Ullmann.

Casaram-se os dois. O casamento durou apenas cinco anos. Contudo, a parceria no cinema e a amizade iria além desse tempo e além dos filmes.

Agora, com o documentário Liv & Ingmar, esta relação é revelada em maior profundidade. É a própria atriz, hoje com 74 anos, quem traz de volta suas lembranças. Em boa medida, são recordações dolorosas. Porém, ela as resgata quase sempre com um sorriso, como a saber que das aflições de sua relação com um mito ficou a experiência única de uma vida de sucesso e reconhecimento.

Intercalando depoimentos de Ullmann e cenas de filmes de Bergman, o documentário realiza uma feliz conexão entre o sentimento vivido e o sentimento transformado em filme. De certa forma, entrega sob a luz da vida real um pouco desse cinema aflito e melancólico, cheio de dor e reflexão a respeito da existência, a respeito de nossas relações com o outro e com nós mesmos. Revela, com dosada sensibilidade, um pouco do Bergman humano que existiu por trás do Bergman mito.

O retrato, porém, não é de confete. Para a atriz, os anos vividos com o diretor não foram fáceis. Alguns aspectos da natureza de Bergman levaram Ullmann ao sofrimento. Ciúme, possessão, isolamento. A solidão que Bergman buscava e precisava para escrever seus filmes afetava a esposa.

Separados, no entanto, o vínculo permaneceu. Desse vínculo, dessa história, Liv Ullmann desdobra não apenas memórias, mas sentimentos. Dentre esses, a sólida certeza de que desde o princípio, como o próprio Bergman profetizou quando se conheceram, eles estavam dolorosamente conectados.

A importância de se assistir Liv & Ullmann está no que o filme resgata e revela a mais sobre o mito de Bergman, mas também sobre o mito de Ullmann, atriz sobre a qual se deposita parte do brilhantismo dos filmes desse diretor. Se ela sabe que sua vida foi completamente transformada pelo diretor, ele também sabia que seu cinema devia muito a ela.

A conexão dolorosa entre ambos nos deu um cinema de obras cuja intensidade ultrapassa a tela e nos afeta profundamente. É um cinema perene, e agora essa perenidade se traduz em parte nas lembranças de Ullmann, nos laços de uma relação complexa, cheia de amor imensurável e sentimentos humanos diversos, muitas vezes antagônicos. Sentimentos que machucavam muito. Mas também cheios do mais simples e dedicado amor.

Como uma indistinção entre arte e vida, sem saber qual imita qual, podemos ver agora que a vida e a relação entre Liv e Ingmar foi também, na sua complexa intimidade, um filme de Bergman.
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Liv & Ullmann
Dheeraj Akolkar
Noruega/Reino Unido/Índia, 2012
83 min.

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segunda-feira, dezembro 17, 2012

Infância Clandestina


Livros de história podem nos ensinar sobre os fatos de uma época. Porém, tornam-se falhos quando se trata de transmitir o espírito de um tempo. Esse “sentimento de uma época” é uma percepção muito mais ligada ao cotidiano do detalhe do que aos grandes acontecimentos. Porque saber das coisas é muito diferente de sentir as coisas.
Pois é pelo viés do “sentimento das coisas” que se monta Infância Clandestina, filme argentino dirigido por Benjamín Ávila e que foi o escolhido pelo país para tentar uma vaga entre os indicados ao Oscar de filme estrangeiro.

Baseado em fatos reais, o filme traduz pelo sentimento uma época sombria da história argentina: a ditadura militar – um câncer político que se espalhou por países latino-americanos na segunda metade do século 20.

Contudo, mais que político, Infância Clandestina é um filme sobre o amor e sobre a perda da inocência. Porque será dentro do encanto infantil, da descoberta do sentimento em meio a uma vida conturbada, que se revelará a aspereza de um tempo.

A figura em torno da qual se desdobrará tais descobertas é o jovem Juan (Teo Gutiérrez Romero), filho de pais ativistas políticos de esquerda. A família retorna ao país clandestinamente depois de um tempo exilados. Planejam ações armadas contra o governo militar. Juan, de não mais que 12 anos, acompanha os pais. Deve usar nome e documentos falsos. Chama-se agora Ernesto e deve fingir ser de Córdoba.

É entre esse sentimento de dever clandestino e as descobertas naturais da infância que o jovem Juan se equilibra. Ele entende seu dever sem questionar, inspirado pelos pais e pela figura do tio, também um revolucionário.

Ao mesmo tempo, Juan passará pela experiência do primeiro amor, sentimento que vai aflorar no convívio escolar, através da figura de María (Violeta Palukas). Entra aí a delicadeza do filme ao construir essa relação de inocência típica da idade, com frios na barriga, hesitações e o descobrimento de desejos antes desconhecidos.

Na condução dessa narrativa, o diretor equilibra todos os tons de forma suave, mas sem roubar da atmosfera a intensidade que ela exige por ser também retrato de um tempo cheio de perigos. A inteligência do filme reside na forma como este matiza a vida de Juan, como transmite uma estranha naturalidade em seu cotidiano incomum.

Tão jovem, ter a firmeza de sustentar uma identidade falsa. Mas também manter com os pais a mais natural das relações de qualquer infância. Neste cotidiano de aparência comum, o convívio com armas, reuniões em que as pessoas chegam vendadas, planos de fuga no caso de serem descobertos.

Todo um clima de incerteza, toda a tensão da guerrilha presentes nesta infância. Uma infância que tem ainda de lidar com a descoberta do amor e toda inocência do sentimento que surge nesta idade.

Através disso, o filme nos envolve com o clima de uma infância sob o clima de um tempo. Está ali o sentimento de uma época, mas não transmitido pela ótica de adultos, cujas memórias serão sempre secas. Mas pela ótica da iniciação, filtrada pelo sentimento da infância, cuja tradução manterá sempre um pouco de ingenuidade adocicada. Porém, no caso de Juan, guardará também a secura e o amargor de um tempo duro, que o marcará pela violência e pela perda mais dolorosa.
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Infancia Clandestina
Benjamín Ávila
Argentina/Espanha/Brasil, 2012
112 min.

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segunda-feira, dezembro 03, 2012

Holy Motors









Se você não assistiu a Holy Motors, então não tem a menor ideia do que se trata esse filme. E se você já assistiu, provavelmente continua sem ter a menor ideia. Treze anos depois de seu último longa (Pola X, de 1999), o diretor francês Leos Carax apresenta agora um trabalho inclassificável. Uma impossibilidade de rótulo e de gênero que pode tanto servir ao elogio máximo como à crítica mais demolidora.

Pode-se amar Holy Motors ou abandoná-lo antes da metade. Isso porque o filme apresenta uma caótica e aparentemente desconexa proposta, de difícil digestão. Para seguir adiante, após o choque insólito, é precioso se permitir o prazer de não entender, o prazer de sair do cinema montado na incerteza. Sem isso, nada feito.

Também é necessário se permitir viajar a cada nova história não contada por inteiro. São as quase-histórias do filme, mas exibidas e construídas com um vigor e sensibilidade estética raros.

Não há uma trama em Holy Motors. Há apenas o dia de um homem que não se sabe quem é e que transita por Paris a bordo de uma limusine e que ao longo do filme se transformará e viverá diversos personagens. Cada um deles com a devida e necessária intensidade.

Entre muitas figuras desconcertantes, temos um louco que sai do esgoto para seduzir uma modelo encarnada por Eva Mendes com uma lambida no sovaco, logo após arraçar a mordidas dois dedos de uma assistente de produção. Temos um encontro melancólico de memoração do passado, além de um pai entristecido pela mentira da filha, e também um magistral interlúdio ao som de acordeões. Outras histórias se revezam, muitas falando da morte ou do ressurgimento. Assim nos atravessa Holy Motors.

Violência, miséria, rancor, absurdo, tecnologia, frustração. Há de tudo um pouco na jornada de um dia desse personagem, que são muitos personagens. São as muitas faces de Oscar, interpretado aqui pelo excelente Denis Lavant. O sentido dessa jornada, ora efusiva e estonteante, ora melancólica e filosófica, pode até se perder nas entre-tramas que se sucedem, nos encontros e desencontros programados sabe-se lá por quem e para quê.

Num mundo tão ávido por sentido, símbolos e significados, no qual o cinema comercial é tão mastigado que dispensa até que se olhe para a tela, um filme cujo sentido não está tão facilmente ao alcance da mão é absolutamente necessário. Goste-se ou não dele.

Mas muito pouco disso seria válido não fosse a acurada câmera de Carax. O diretor constrói sobre o nada climas de um onírico realista, uma espécie de sonho sem metafísica. Impõe ao filme ritmo, cores e atmosferas que destacam uma assinatura vigorosa e marcante.

Não gostar de Holy Motors é parte do jogo. É até mesmo a essência do cinema, que nunca foi feito – e bom que seja assim – de unanimidades. Pode-se até desprezá-lo ou abandoná-lo ao meio, mas não é possível vê-lo sob a máscara do impassível.

Não se abandona este filme por tédio, mas talvez por desesperança. A desesperança de ver algum sentido. Mas o sentido pode ser buscado após, ou na releitura, ou até mesmo inventado. O que Carax nos proporciona é a oportunidade de escavar esse sentido. Um sentido talvez oculto no leque de caminhos que se bifurcam, como um Borges ou um buraco de Lewis Carrol.

Entender ou não é o de menos. Holy Motors tem em si algo de essência cinematográfica, uma essência que tem escorrido por ralos de mediocridade, afetação e superficialidade. A essência da jornada, da experiência, da provocação, do estímulo ao pensamento e, principalmente, do estímulo aos sentidos. Pode até não significar nada, mas é um nada mais pleno do que muito estofo vazio que se vê por aí.
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Holy Motors
Leos Carax
França/Alemanha, 2012
115 min.

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domingo, dezembro 02, 2012

Argo

A se levar em conta Ben Affleck como ator, pode ser uma surpresa que como diretor ele tenha realizado um filme muito bom. Mas isso não é inédito, já que esta não é a primeira aventura de Affleck na direção. Em 2007 ele realizou Medo da Verdade e em 2010, Atração Perigosa. Em nenhum deles se mostrou brilhante, mas tampouco realizou filmes ruins.

O que este ator mediano tem exibido como diretor é algo raro: competência. Um atributo escasso na Hollywood dos últimos anos. Se o brilhantismo é ainda mais raro e a baixa mediocridade impera nas produções do cinema americano, ver um filme realizado com competência já é motivo suficiente para celebração. Especialmente quando ela surge de onde menos se espera.

Argo é baseado em uma história real. Uma operação da CIA, realizada em 1980, que ficou arquivada como ultrassecreta até 1997, quando o presidente Bill Clinton autorizou sua desclassificação sigilosa. Trata-se do resgate de seis funcionários da embaixada americana no Irã, logo após a revolução dos aiatolás, em 1979.

Na ocasião, a embaixada foi invadida pelos radicais da revolução, que fizeram 52 norte-americanos reféns. O episódio ficou conhecido como a crise dos reféns no Irã e durou mais de um ano. Mas o filme não é sobre isso. É sobre um grupo de seis funcionários que conseguiram fugir durante a invasão da embaixada e ficaram escondidos na casa do embaixador canadense. Por diversas razões, era preciso tirar esses seis refugiados do país o mais rápido possível. Daí nasceu a operação “Argo”.

Ben Affleck interpreta o especialista em “exfiltração” (o oposto de infiltração) Tony Mendez. Entre planos absurdos sugeridos pela CIA, como fazer os refugiados saírem do país em bicicletas, pedalando 500 km em pleno inverno, a sugestão de Mendez foi a mais absurda. Ele quis simular a realização de um filme de ficção científica e tirar os refugiados norte-americanos fazendo-os se passarem por integrantes da produção do filme.

Para dar certo, o plano exigia uma montagem convincente de uma produção, com participação de produtores reais de Hollywood, com a imprensa acreditando que um filme estava sendo feito e com um roteiro de verdade, além de todo material publicitário. Mais uma vez, a realidade mostra que pode ser mais estranha que a ficção.

A grande competência mostrada em Argo por seu diretor está em orquestrar e fazer transitar as duas metades muito distintas do filme. Na primeira, há um tom de graça, tanto no modo como os oficiais da CIA se autorrecriminam pelos erros de avaliação, quanto no mundo do cinema, com piadas autodepreciativas sobre o meio artístico. Na segunda metade, o clima é de tensão, com a operação em pleno andamento em território iraniano.

O modo como o filme transita de um tom para outro, sem solavanco ou suspensão da credibilidade, é consequência de uma montagem afinada, de um bom roteiro e da condução sem excessos de Affleck. O resultado diverte e tensiona o público numa medida correta, eficaz. Sua engrenagem funciona, e funciona muito bem.

Pode-se sempre se dizer que a história real em si, com tudo que tem de absurda, seja suficientemente boa para segurar um filme. Mas ela não funcionaria sozinha. Para servir como cinema é preciso mais do que uma boa história, é preciso saber desenvolvê-la e mesmo desembaraçá-la.

Nesse aspecto, Argo e seu diretor merecem reconhecimento. Pois com uma trama tão absurda como esta, o pantanoso da situação improvável poderia facilmente fazer o filme atolar. Em vez disso, o que se vê é uma narrativa que desliza com segurança, alternando de forma bem dosada seus momentos de riso e de risco. É essa segurança de pulso, livre de excessos, que faz de Ben Affleck um diretor bastante convincente.
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Argo
Bem Affleck
EUA, 2012
120 min.

Trailer

 

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