terça-feira, setembro 25, 2012

O Verão de Giacomo

Recentemente aprendi uma lição com o colega de crítica Chico Fireman, do blog Filmes do Chico. Escreveu ele que quando ouve alguém dizer que achou algum filme chato, se pergunta se o filme que é chato ou a pessoa que é preguiçosa.

A observação é pertinente. Com o tanto de filmes superficiais, fabricados em série para serem consumidos sem que se precise prestar muita atenção – quanto mais pensar –, não é difícil que qualquer filme que exija um pouco mais de reflexão seja taxado de chato.

A máxima vale perfeitamente para O Verão de Giacomo, exibido ontem no festival de cinema mundial Indie 2012 (que está a pleno vapor, no Cinesesc e Galeria Olido, com entrada franca). Isso porque as primeiros minutos do filme me levaram à preguiça de taxá-lo, prematuramente, de chato. Equívoco que se desfez para lá da metade de sua duração, quando fui fisgado pela dinâmica do filme.

Sua proposta é menos narrativa e muito mais construtiva. Não se trata de uma história, mas da construção de um sentimento de relação, no qual a sutileza dos gestos, quando lidos com atenção e paciência, dizem tudo sem que se precise de palavras.

Giacomo (Giacomo Zulian), em plena adolescência, vai com sua amiga de infância, Stefania (Stefania Comodin), fazer um piquenique na beira de um rio. À partir dessa tarde de verão, longe de tudo, o filme constrói em torno dessa relação inocente um memorial da amizade juvenil envolto na sensualidade e no desejo minimalista.

Há inocência e verdade na forma como o filme filtra esse momento na vida dos personagens. Não há desafio, nem contraponto. Apenas a troca de brincadeiras, provações e o tempo junto. O conflito está implícito, existe em cada um dos dois personagens, e nunca é exposto claramente. Deixa-se subentendido, ao sabor de quem vê com olhos de ver e de sentir.

Para chegar ao resultado final, o diretor não se apressa. Sabe que a construção de algo tão sutil exige tempo. É esse tempo que pode levar os incautos e apressados a desistirem. Quem resistir e se deixar levar pelo tempo do filme, entenderá no final seu propósito, que está mais para a delicadeza do que para a explicação.

A grande qualidade de O Verão de Giacomo está em sua capacidade de traduzir o intangível através do tempo solto, sem pressa de se fazer claro, construído com a generosidade da juventude e da vida. Não é filme de grandes reflexões, para apreciá-lo, basta apenas se deixar levar pelo verão, pela pele dos personagens, pela aura de juventude e pela sutileza que permeia suas imagens.
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L'estate di Giacomo
Alessandro Comodin
Itália/França/Bélgica, 2011
78 min.

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domingo, setembro 16, 2012

O Exercício do Poder






O filme começa com um sonho de tons fetichistas e dominadores. Há a ocultação de rostos sob capuzes, há a nudez assertiva e ao mesmo tempo submissa, há o ritualístico sacrifical. Uma bocarra engole tudo, mas o faz passivamente; quem se deixa engolir é a nudez, quase que de forma afrontosa, embora não menos submissa. Encerra o sonho uma ereção. Símbolo do poder masculino. Fálico cetro.

Em sua narrativa, O Exercício do Poder lança holofotes sobre Bertrand Saint-Jean (Olivier Gourmet), ministro dos transportes da França. É sua rotina – iniciada em madrugada de sono interrompido por um acidente envolvendo adolescentes – que o filme acompanha. Desde o princípio, vê-se, esta rotina será marcada pelas aparências, peça chave no jogo político que o filme esmiuçará com inteligência e dinamismo.

Uma das qualidades do filme está no seu posicionamento. Ao contrário do que geralmente ocorre em filmes que abordam o cotidiano da política, este não faz qualquer destilação venenosa. Evita cinismos e joguetes de efeito para se concentrar num quadro realista e amoral composto pela persona de seu protagonista.

Está claro, desde o princípio, a importância da aparência. Do gelo no rosto para reduzir a expressão de sono, da troca de gravatas imposta pela assessora para que ninguém se destaque mais que o ministro, dos discursos redigidos e refeitos à força do momento e do efeito esperado. Em tudo há o cálculo dos efeitos, a inautenticidade que rege os princípios dos cargos públicos.

Mas ao acompanhar o exercício do cargo e colocar sua lente “colada” na rotina de Saint-Jean, o diretor Pierre Schöller nos guia por uma verdade muito mais matizada do que a das aparências. Podemos entrever sob a aparência oficial o homem de fato, num arroubo ou outro de espontaneidade. Mas vemos, acima de tudo, o homem-poder, o homem-ambição, “como um tigre faminto na noite escura”.

É na construção dessa figura política, do jogo de poder e contrapoder, que o filme exercita com inteligência sua capacidade de abstrair-se do cinismo cinematográfico para imergir nas atribulações políticas, nas frestas das decisões de Estado, fabricadas menos pelo mérito da questão e mais pela vaidade eleitoral.

Nessa composição, entre a tragédia que surpreende, mostra também um Estado francês falido, tão falido quanto ideais ou interesses legítimos. Mas O Exercício do Poder não “vilaniza” as figuras do Estado, apenas lhes atribui sua cota de seduzidos ante o cargo, sua cota de indiferença ante as tragédias, a pobreza ou o estado das coisas do Estado.

Sobra, com isso, pouco espaço para o humano. Regidos, dogmatizados e focados no poder, os homens da política pouco se assemelham a homens de verdade. São autômatos de sua ambição. Só se vê o ser humano quando, em frestas de momentos, sob o peso da tragédia, uma nesga de sinceridade aparece. Como um político que discursa para si mesmo, quase em silêncio. Porque o único discurso que trazia alguma sinceridade nas palavras, ironicamente, não pôde ser discursado.
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L'exercice de l'État
Pierre Schöller
Françca/Bélgica, 2011
115 min.

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quarta-feira, setembro 12, 2012

Cosmópolis

 A violência em Cosmópolis, embora não mascarada, esgueira-se semioculta nos diálogos e na dissolução gradual de seu protagonista. De certo modo, é a mesma violência que caracteriza a obra de seu diretor, David Cronenberg. Porém, desta vez, esta violência guarda uma sutileza que nos agride por dentro, porque sua brutalidade está no quanto ela é real e atual. Está aí a brilhante inteligência de Cosmópolis. Um filme cuja violência transparece através de filtros que transluzem, no visual e no textual, a inteligência da obra original, o homônimo romance de Don DeLillo.

Terra, trabalho e capital: nos ensinaram os primordiais estudos de economia. O tripé que susteve o mundo até pouco tempo atrás e sobre o qual se depositou a fé do mercado e a lógica do capitalismo. Uma lógica que, pouco a pouco, tecnologicamente, se dissipou em números fugazes em telas translúcidas. Não se vê mais a terra, não se vê mais o trabalho, não se vê mais o capital. Tudo são evaporações que correm o globo, mudam de mãos, inundam desertos e secam oceanos sempre virtuais, sem que nada se faça além de apertar botões ou correr os dedos por telas sensíveis ao toque.

Em Cosmópolis, a figura que personifica esse nosso tempo e sua distorção enquanto realidade é Eric Paker (Robert Pattinson). Em sua limusine, ele cruza Nova York porque decidiu que precisa cortar o cabelo. Não importa que o presidente dos EUA esteja na cidade, que manifestantes estejam em turbas, que ele próprio seja alvo de ameaças. Blindado de tudo, guardado por seguranças e pelos bilhões que acumulou sem nunca tê-lo vistos fisicamente, ele segue adiante. À sua destra e à sua sinistra, as telas pelas quais controla os rumos de moedas do mundo e sua fortuna, feita de números impensáveis. Ele é o poder da nova era.

Em sua trajetória pela cidade faz sexo, é examinado por um médico, discute o absurdo com diferentes personagens. Não busque sentido nos diálogos. Estes muitas vezes existem para personificarem em palavras o desajuste das coisas, o incompreensível do todo “minimalizado” no interior da limusine. Nesse universo, Eric soa como um avatar que passa a crer em si mesmo não como avatar, mas como elemento natural do absurdo. No processo, desconstrói-se.

Há uma cena, perto do fim, em que Eric pula um portão. Desgrenhado, revólver na mão, sorriso insano, corre sem pressa em direção a algo de que normalmente se quer fugir. Esta cena não é apenas o ponto alto do filme, é também o ponto alto da carreira do ator. Ali, naquele limiar de poucos segundos, rompe-se o restante de lógica. A degradação inevitável de Eric, simbolizando a degradação inevitável de nossa sociedade econômica, vai ao encontro de um tipo único de consciência. A consciência do fim. Algo que vem como redenção indesejada de pecados não assumidos.

Neste Cosmópolis, mais uma vez Cronenberg nos coloca em desconforto. Agora, não pela violência explícita, não por um psicologismo perturbador. O que perturba aqui é o visível que não queremos ver. É o fim que sabemos próximo, de uma violência presente no cotidiano inofensivo de uma época tão impalpável e dissoluta como a que vivemos hoje em dia.
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Cosmopolis
David Cronenberg
França/Canadá/Portugal/Itália, 2012
109 min.

Trailer

 

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