quinta-feira, junho 14, 2012

Prometheus



Superficialmente, pode-se dizer que Prometeu, na mitologia grega, foi quem roubou o fogo dos deuses e entregou aos mortais. Fogo, que nesta dimensão mitológica, simboliza o conhecimento. Zeus ficou enfurecido com Prometeu. Condenou-o a ficar acorrentado a uma rocha enquanto uma águia comia seu fígado, que se regenerava infinitamente, perpetuando seu sofrimento.

Em Prometheus, novo e aguardado filme de Ridley Scott, é com o nome do herói mitológico que é batizada a nave de exploração científica que viaja através do espaço. A missão da nave não é menor que a amplitude mitológica do herói: encontrar a resposta para a origem da humanidade, a resposta para a pergunta fundamental "de onde viemos?", cujas pistas apontam para um planeta distante.

O caminho desse planeta é dado por escavações arqueológicas na Terra, nas quais uma mesma figura e uma mesma constelação aparecem gravadas em diferentes achados de civilizações ancestrais. Separadas por milênios  e sem nunca terem tido contato entre si, estas civilizações compartilham uma figura similar, que apontam para um distante sistema solar semelhante ao nosso.

A empreitada de exploração é bancada por uma empresa privada, a Weyland Corp. Entre os 17 membros da tripulação, está a fria executiva Meredith Vickers (Charlize Theron), além dos pesquisadores responsáveis pelas descobertas arqueológicas - Charlie Holloway (Logan Marshall-Green) e Elizabeth Shaw (Noomi Rapace) - e o androide David (Michael Fassbender).

A grande expectativa em torno de Prometheus está ligada ao fato de Ridley Scott retornar ao gênero da ficção científica 30 anos após Blade Runner: O Caçador de Androides, sua última investida no gênero e que nos legou um clássico cultuado por gerações; e também pela possibilidade do diretor voltar ao universo de outro clássico do gênero que ele também realizou: Alien – O Oitavo Passageiro (1979).

Sim, o filme é a retomada do universo de Alien; mas, não, o filme não se conecta diretamente (pelo menos não ainda) aos eventos da nave Nostromo que tornaram a tenente Ripley (Sigourney Weaver) um arquétipo de sobrevivência e força feminina. E se o leitor achar que isso é um spoiler, não se preocupe, há mais mistérios entre a Terra e o espaço sideral de Ridley Scott do que julga nossa vã filosofia. Lamentável apenas que o diretor pareça ter cedido a convenções subdramática de Hollywood e dispersado parte de sua ótima história com personagens problematizados de forma tão rasa e desnecessária que chega a ser embaraçoso.

Visualmente, Prometheus é esplêndido. Visto em 3D, as texturas, a profundidade de campo, as projeções tridimensionais dos recursos tecnológicos da história ganham uma nitidez impressionante. Mesmo elementos fora da profundidade do 3D são ótimos, como o desenho interno da nave, os trajes e veículos e a engenharia alienígena. Para esses detalhes, Scott contou com o mesmo designer do filme original, o suíço H. R. Giger.

Narrativamente, Prometheus é um filme que nos fisga desde o início e segue alternando em nós curiosidade, tensão, interesse e suspense. Difícil não ser absorvido pela expectativa das descobertas possíveis que a chegada da nave ao planeta de destino instiga. A primeira metade do filme é uma aula de ficção científica, de desenvolvimento de atmosfera, de construção da expectativa. Scott trabalha de forma brilhante sua narrativa, até que a história começa de fato e os personagens se delineiam e algo se perde no caminho. Então, parte da riqueza construída com energia e contenção, cede lugar a desdobramentos mal acabados, respostas superficiais e violência óbvia. 

O medo está lá. Nunca tão intenso e terrível como no primeiro Alien. Mas, especificamente numa sequência, é tão visceral quanto e angustiante quanto. Mas é a trama e a ação de alguns personagens o que acaba por enfraquecer substancialmente o impacto do filme. Assim como algumas respostas mal resolvidas da história, que mesmo sendo visivelmente ganchos para uma possível continuação, mereciam melhor clareza.

No desdobramento do roteiro, por exemplo, é possível notar uma certa preguiça e pressa no encaminhamento da história. Isso leva alguns personagens a tomarem atitudes não condizente com seus backgrounds, o que afeta imediatamente nossa suspensão de descrença (condição de credulidade assumida para que possamos entrar num universo ficcional), tão necessária para uma experiência plena no gênero de ficção científica.

Mesmo a personagem da Dra. Elisabeth Shaw, protagonista de alguns dos melhores momentos e cujo papel é fundamental para o andamento do filme, carrega uma ligação com o passado e um ressentimento íntimo que quase nada acrescentam à trama. Pior, são inseridos nela de forma abrupta, artificializando seu efeito e revelando a precariedade do remendo sentimental absolutamente desnecessário.

Admite-se que, como aventava o trocadilho óbvio com o título do filme, que Prometheus gerou uma absurda expectativa, justificada em parte pelo que ele, de fato, prometia. Dos nomes envolvidos, passando pelo universo revisitado e chegando até o trailer impactante e assombroso, o filme empenhou uma ansiedade dificilmente poderia ser inteiramente atendida. Mas o resultado final fica abaixo do que parecia possível. Longe de ser uma retumbante decepção, acaba perigosamente próximo de uma superficialidade que desintegra boa parte da expectativa.
Como filme de gênero é ótimo. Impecável nos efeitos. Porém, tristemente dispersivo e tolo na dramaturgia.

Ridley Scott construiu um universo estupendo. Mas, neste caso, parece ter dado pouca importância e atenção ao que realmente mantém esse universo em pé: contar uma boa história sem perder o foco. Com uma melhor polida no roteiro e nos personagens faria do filme algo grandioso, monumental, clássico instantâneo. Como está, fica apenas acima da média. O que, por incrível que pareça, é menos do que muita gente esperava.
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Prometheus
Ridley Scott
EUA, 2012
124 min.

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Apenas Uma Noite



Não há qualquer novidade na frase fundamental de Apenas Uma Noite, dita no meio do filme: “Você pode estar feliz e ainda se sentir tentado”. Porém, ela se enquadra no tipo de verdade que, por mais óbvio que seja, precisa ser dita de vez em quando. No caso da muito bem ajeitada trama do filme, ela é a chave que abre a primeira porta de um pequeno labirinto a que todos temos acesso ao menos uma vez na vida: a tentação da infidelidade.

Joanna e Michael Reed (respectivamente Keira Knightley e Sam Worthington) formam um casal moderno de Nova York. Ela é uma escritora que produz artigos para revistas de moda enquanto tenta terminar seu novo romance. Ele trabalha para uma empresa de arquitetura na qual desenvolve projetos em equipe. Em suas vidas, tudo parece bem. São bonitos, bem sucedidos e felizes um com o outro.

Um pequeno complicador surge quando, em uma festa, Joanna conhece a nova colega de trabalho de Michael. Laura (Eva Mendes) é uma mulher muito atraente e Joanna acha naquele momento que o marido sente-se atraído pela colega. Há nesta cena um jogo sutil no modo como a câmera trabalha essa suspeita, captando trocas de olhares, flagrando situações muito tênues. Desenha-se ali a condução suave e inteligente que a diretora iraniana Massy Tadjedin dará a todo o filme. No fim da noite, o casal tem uma breve discussão sobre a suposta atração que Michael sente por Laura, especialmente porque na manhã seguinte eles viajarão juntos a trabalho.

O inesperado, no entanto, acontece com Joanna, que na mesma manhã seguinte encontra um antigo namorado. Ele a convida para se encontrarem a noite e ela aceita.

Começa então o jogo paralelo de sedução, tentações e diálogos francos entre os casais, cada um tendo a sua própria noite de provação. Não há, por nenhuma das partes, a negação da atração e do desejo que sentem e é esta franqueza que torna o filme mais interessante.

Apenas Uma Noite é um filme adulto, para adultos. Não se trata de mais uma história sobre relacionamentos, daquelas que tentam desconstruir a relação, revelar mecanismos ou trazer à tona mágoas e ressentimentos. É apenas um filme sobre algo simples, mas no íntimo complexo: a fidelidade diante do desejo. E apesar de não evitar algumas superficialidades, apresenta uma discussão muito honesta sobre a questão.

Mesmo com gênese para se tornar aquilo que pejorativamente se chama de “cinema falado” (quando as palavras se sobrepõem às imagens), a diretora consegue dar uma azeitada fluência à narrativa. Cria sutilezas, trabalha gestos, investe em ambientes diferentes, dá mobilidade a seus personagens.

Na construção da dúvida, na tensão criada pela possibilidade tão próxima entre prazer e culpa, Apenas Uma Noite se sai como um saboroso diálogo entre desejo e responsabilidade. Sem julgamentos morais e de forma franca, transmite através de seus personagens uma situação da realidade, com a qual relacionamentos sempre se deparam, mas raramente resolvem. Não seria, claro, um filme que o resolveria. Mas dá substância ao assunto ao retratar com sinceridade e delicadeza esta questão inevitável.
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Last Night
Massy Tadjedin
EUA/França, 2010
93 min.

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segunda-feira, junho 11, 2012

Kaboom


 CRÍTICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO SITE CINECLICK

Enquadrando-se naquele gênero de filme difícil de ser enquadrado em algum gênero de filme, Kaboom exige um grande esforço para ser apreciado ou, pelo menos, aturado. Isso porque sua estrutura, roteiro e dinâmica servem a um projeto de provocação e cinismo nada fácil de ser digerido. Tudo fruto da mente do diretor e roteirista Gregg Araki, conhecido por seus filmes independentes de temática gay e qualidade duvidosa.

Smith (Thomas Dekker) é um jovem gay, estudante de cinema, que tem fantasias eróticas com seu colega de quarto hétero. Mas ele também transa com garotas e é ao voltar para seu dormitório após fazer sexo com uma delas que presencia uma estarrecedora e surreal cena de assassinato, cometido por homens usando máscaras de animais. Ao menos é o que ele pensa, já que desmaia logo em seguida e ao acordar tem dúvidas sobre o que viu. Especialmente porque a garota assassinada é idêntica a uma que aparece em um sonho recorrente seu.

Intrigado com o mistério, Smith pede ajuda à sua melhor amiga, Stella (Haley Bennett), uma lésbica que está saindo com uma feiticeira com poderes sobrenaturais. Enquanto busca pistas sobre o que ocorreu, Smith experimenta o sexo casual com homens e mulheres. Também passa a ser perseguido por sujeitos com máscaras de animais, ao mesmo tempo que ajuda a amiga Stella a fugir da obsessiva lésbica-bruxa. Em meio a tudo isso, descobre os planos de uma seita secreta que planeja o fim do mundo e que está ligada à seu passado e a seu pai, morto num acidente de carro quando ainda era criança.

Este resumo da ópera dá uma ideia do que esperar de Kaboom e sua insana espiral de tipos e situações. Mas é preciso acrescentar que o diretor tempera tudo isso com um visual e ritmo de seriado televisivo. Além de um pouco de escatologia e algumas cenas de sexo. A mistura não é exatamente digestiva, já que alguns excessos e a ausência de uma boa amarração no andamento da trama fazem enjoar rapidamente. Portanto, o risco de abandono da sala é grande, como se viu em 2010, quando o filme foi exibido (fora de competição) no Festival de Cannes.

Cabe reforçar, no entanto, que o diretor caminha pelas vias da provocação e da desconstrução de seus temas recorrentes. Claro que nem sempre acerta, mas vale dizer que o surrealismo faz parte de suas referências, como fica claro em uma cena do filme que faz referência ao cinema de Luis Buñuel. Além da temática gay – aqui tratada muitas vezes de forma banal e rasa – está também presente sua sátira às séries televisivas de comédia e dramas adolescentes.

O resultado de tudo é um filme esquisito, criado dentro de um propósito que parece claro para o diretor, mas muito confuso para quem o assiste. Não se pode, porém, dizer que o filme é irregular, já que a irregularidade é o elemento principal da construção do filme. Ou seja, é proposital. Mesmo sendo o espírito provocativo algo desejável em qualquer cinema, no caso deste exemplar de Gregg Araki a mão pesada fez o molho azedar. Por isso, a digestão de Kaboom não é nada fácil.
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Kaboom
Gregg Araki
EUA/França, 2010
86 min.

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Para Sempre


CRÍTICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO SITE CINECLICK

Drama romântico inspirado em uma história real, Para Sempre começa carregando nas tintas. Além do exagero numa cena de acidente de carro, todo início do filme é contaminado por um romantismo tão excessivo que chega a enjoar. Não precisava tanto para fazer o público entender que Leo (Channing Tatum, de Anjos da Lei) e Paige (Rachel McAdams, de Meia-Noite em Paris) formam um casal muito apaixonado. Pelo menos até o acidente que muda suas vidas.

Leo é um jovem empreendedor, dono de um pequeno estúdio de gravação. Apesar do ramo não ter muito futuro, já que qualquer um pode fazer uma boa gravação com um computador, ele acredita na sua paixão pela música. Já Paige largou a faculdade de direito para estudar arte e tem se saído bem como uma escultora de talento promissor.

No entanto, tudo muda quando eles sofrem um acidente de carro. Leo sai com poucos ferimentos, Paige, contudo, bate a cabeça e fica alguns dias em coma. Quando ela recobra a consciência, não reconhece o marido, nem se lembra de nada dos últimos cinco anos de sua vida. É quando surgem seus pais, com quem ela não falava há anos, desde que abandonou a faculdade e foi viver de arte. O porquê dela ter rompido com a família, com o antigo noivo e com um estilo de vida totalmente diferente estão perdidos nos anos que sua memória insiste em não lembrar.

Mais do que não lembrar, ela está diferente. Gostos, valores e atitudes são de uma Paige antiga, que Leo não conheceu e não reconhece como sua esposa. E nem ela a ele.

É a partir desse conflito que o filme cresce, diminuindo sua voltagem romântica e abordando o drama de Leo, que tenta restabelecer sua vida ao lado da esposa. Mas por mais que ela se esforce, ele continua sendo um estranho para ela, assim como a vida que eles viviam e os amigos que tinham. Um problema que se agrava com a interferência da família dela, que sempre desaprovou a vida que ela decidiu levar e vê agora a oportunidade de recuperar a filha que tinham perdido.

Na composição desse drama, Para Sempre não escapa de alguns clichês, mas acerta em evitar muitos outros. Em alguns momentos parece levar a trama para um caminho previsível, porém desvia-se desse caminho a tempo de não cair no óbvio. Na comoção do marido apaixonado que tenta reconquistar a esposa, a cara de cãozinho pidão de Channing Tatum ajuda bastante, conseguindo até alguns lampejos de boa atuação.

Mesmo sendo um tanto irregular, o filme funciona bem como história romântica. Vai até um pouco além e traz uma subtrama de reconciliação, atenuando maniqueísmos e diminuindo os tons estereotipados de alguns personagens. Nesta subtrama, a participação da atriz veterana Jessica Lange como mãe de Paige presenteia o espectador com um momento de intensidade e ótima interpretação. São pequenas surpresas, ou momentos, como gosta de dizer o protagonista Leo, que fazem o resultado final ser melhor que a soma das partes.
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The Vow
Michael Sucsy
EUA/Brasil/França/Austrália/Reino Unido/Alemanha, 2012
104 min.

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Madagascar 3: Os Procurados





CRÍTICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO SITE CINECLICK

Os quatro animais foragidos do zoológico de Nova York retornam às telas de cinema agora em 3D. Depois de terem ido parar na ilha de Madagascar no primeiro filme, e no coração da África no segundo, o leão Alex (voz de Ben Stiller), a zebra Marty (voz de Chris Rock), a girafa Melman (voz de David Schwimmer) e o hipopótamo Glória (voz de Jada Pinkett Smith) dessa vez vão parar na Europa.

Ainda tentando voltar para Nova York, eles precisam encontrar os pinguins que, junto com os macacos, estão em Monte Carlo faturando alto no cassino da cidade. É na tentativa de tirar os pinguins da jogatina desenfreada que eles vão encar sua pior vilã, a incansável capitã Chantel DuBois (voz original de Frances McDormand). Ela é uma oficial francesa que lidera a divisão de controle de animais, cujo maior sonho é conquistar o único troféu que falta em sua coleção de animais caçados: a cabeça de um leão. É para fugir dessa imbatível predadora que todos vão parar em um circo, se misturando com os animais do espetáculo.

Sempre sonhando com a volta ao zoológico da Big Apple, eles vão de Monte Carlo a Roma e de Roma a Londres. Nunca sem a companhia dos lêmures indiscretos e dos pinguins militarizados, que ainda rendem as melhores piadas.

Contudo, Madagascar 3 mostra que a franquia, que nunca foi das melhores, enfraqueceu bastante. Seus personagens perderam força e se tornaram repetitivos. Para piorar, nesta terceira aventura o roteiro é quase posto de lado. A ação joga todos de um lado para outro até metade do filme e é só quando chegam ao circo que tem início um fio de história, com a entrada de novos personagens.

Precisando fazer valer o efeito 3D, o filme parece muito mais focado em malabarismos voadores, que reforcem o efeito tridimensional de “saltar aos olhos”, do que em ser engraçado ou divertido. Perto do fim, aposta num colorido sintético, artificial, quando a trama descarta o circo tradicional e adere ao modelo de circo acrobático de efeitos especiais, que tanto sucesso faz atualmente.

Claro que para as crianças a diversão está garantida, mas comparando com os filmes anteriores, o resultado desta terceira investida parece truncado, sem carisma e com graça de menos.
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Madagascar 3: Europe's Most Wanted
Eric Darnell, Tom McGrath e Conrad Vernon
EUA, 2012
85 min.

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sexta-feira, junho 08, 2012

Deus da Carnificina


Novo trabalho de Roman Polanski, Deus da Carnificina é a adaptação para o cinema de peça homônima - e muito premiada - da dramaturga argelina radicada na França Yasmina Reza.

Dois casais se reúnem para tratar de uma briga entre seus filhos de 11 anos. Uma das crianças, após discussão em um parque, agrediu a outra com um pedaço de pau, quebrando-lhe dois dentes. Para resolver o assunto, Alan (Christoph Waltz) e Nancy (Kate Winslet), pais do garoto agressor, vão até o apartamento de Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reily) a fim de, amistosamente, acertarem-se como adultos educados e civilizados.

Diante da delicada situação, o desconforto é inevitável. Entre sorrisos cordiais e comentários amistosos, ambos casais concordam que a agressão foi uma violência inaceitável e que ambos os jovens devem se acertar, com pedidos de desculpas e reconhecimento do erro. Mas entre as muitas cordialidades, todos deixam escapar, vez por outra, alguma farpa no uso das palavras e no ponto de vista pessoal sobre o assunto. Serão estas farpas que irão aos poucos se acumulando, transformando uma situação educada num teatro de deboche.

Quase toda a ação se passa dentro do apartamento. Um aprisionamento quase involuntário, engenhosamente construído, e que apesar de não conter nada de surreal, remete indiretamente ao surrealista O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel. Não apenas pela retenção das pessoas no mesmo ambiente, mas pela degradação que a permanência dessas pessoas juntas causará nas relações e em suas posturas civilizadas.

Por ser adaptação de uma peça, Deus da Carnificina não deixa de ser “cinema falado”, que é quando o texto se sobrepõe à imagem na construção do filme. Polanski não inventa malabarismos para narrar este texto. Vai pelo simples. Mas nem por isso deixa de nos apresentar sua veemência irônica e inteligente subjetividade de olhar, utilizando como mestre o foco, a angulação e a profundidade de campo. Seu jogo de cena é refinado o suficiente para nos manter dentro da tensão e próximos o suficiente dos personagens para que suas emoções nos alcancem.


Mas, além do texto excelente, são as atuações o grande trunfo do filme. Desde o início cada personagem deixa clara sua personalidade, criando sutis confrontos, sempre amenizados pela boa educação. No crescente agravamento desses confrontos, é fundamental o modo como cada ator compõe seu personagem. Cabe prestar atenção nas expressões que se alteram, nos olhares atravessados, nas torcidas de lábios; sutis desconfortos revelados pelo rosto, nas feições de quem se sente atingido ou está pouco se lixando. Toda essa nuance é criada com precisão pelos quatro atores, com destaque para Christoph Waltz e Jodie Foster, que protagonizam o melhor embate de personalidades.

Com o decorrer das horas vão se esfoliando as camadas civilizatórias e o discurso do bom senso vai se desmanchando. Numa espécie de desmascaramento catártico em grupo, não apenas as relações cordiais de convívio social serão abaladas (questionadas e desconstruídas), mas também as relações familiares, fazendo aflorar mágoas, ressentimentos e insatisfações entre os casais.

Mais do que a argúcia com que Deus da Carnificina desmorona as aparências, o mais contundente de sua destruição é como o humor, nascido do deboche e do ridículo de cada um, transforma tudo numa experiência de riso e identificação. Uma franqueza ácida e cômica que traz à tona o que há de latente sob nossa pele supostamente cordata e civilizada. Um filme para se ver, rir e pensar.
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Carnage
Roman Polanski
França/Alemanha/Polônia/Espanha, 2011
80 min.

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sexta-feira, junho 01, 2012

Um Verão Escaldante

Monica Bellucci nua, deitada na cama, convida. Não se sabe a quem o convite se dirige. É com essa imagem de sonho que o diretor francês Philippe Garrel tenta nos seduzir logo nas primeiras cenas de Um Verão Escaldante. A sedução funciona apenas no início. A presença magnética da atriz italiana é sempre motivo de atenção para o olhar. Não por acaso, é ela quem protagoniza o melhor momento do filme, um plano sequência que fecha o primeiro terço dessa história de amor e distanciamento.

Para o papel principal, o diretor escala seu filho – e bom ator – Louis Garrel. Ele interpreta Frédéric, um pintor francês que vive em Roma com sua esposa e atriz de cinema Angèle (Bellucci). A história é narrada por Paul (Jérôme Robart), melhor amigo de Frédéric. Ele é um aspirante a ator que faz pequenas participações em filmes e vive com Élisabeth (Céline Sallette), que conheceu num set de filmagens. Ao viajarem para visitar o amigo pintor em Roma, acabam todos morando na mesma casa, a convite de Frédéric.

A proximidade dos dois casais não tem interferência no desgaste que ambos relacionamentos irão sofrer. Mas todos serão afetados por esse desgaste. Durante o processo, vê-se o amor imenso que cada um dedica, à sua maneira, ao seu par. E há também uma tediosa narrativa, na qual a construção do distanciamento dos personagens é refletida no distanciamento da câmera.

É justamente esse distanciamento que nos mantém, a nós espectadores, também distantes. E como todo esse sentimento não nos afeta, resta apenas a observação. Uma observação afastada, barreira criada entre filme e espectador.

Garrel filma sempre a certa distância. Predomina no filme planos médios. Esse distanciamento parece refletir o mesmo distanciamento que se cria entre os personagens, quase nunca próximos demais, apesar do grande amor. É dessa mesma forma que o diretor nos mantém em relação a seu filme, criando um vácuo entre sentimento e público, impedindo qualquer empatia com os dramas retratados.

Um efeito proposital, pensado, mas que articulado com uma trama de conflitos escassos, cai na monotonia, tornando-se irregular.

Uma dança discretamente sensual de Monica Bellucci, em plano sequência, fecha o primeiro ato e ilustra o modo como os personagens às vezes se veem: com intensidade, mas a certa distância. Desse ponto até o segundo marco, o filme decresce. Entra numa dinâmica lenta e espiralada que traz arremates de ciúme, desconforto, rompimento e adultério.

Pontuado novamente por música, abre-se o terceiro ato e o filme volta a crescer. Entra na dinâmica a vida e a morte. Entre elas, o amor. Não sem certa pieguice. O afastamento persiste e, no último plano, é um gesto de afastamento que encerra a narrativa. Um Verão Escaldante está cheio de sentimento, mas este nunca chega até nós. Sem senti-lo, também nós nos afastamos e acabamos por ter como experiência um certo vazio. O mesmo vazio que os personagens temem tanto e não conseguem evitar.

Articulado em seu cinema, Philippe Garret propõe um interessante exercício de observar os sentimentos sem senti-los com empatia. Mas desliza no tédio colateral desse exercício e no vazio exagerado que ele proporciona.
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Un Été Brûlant
Philippe Garrel
França/Itália/Suíça, 2011
95 min.

Trailer

 

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